IV
DOS PICÔTOS AO MOINHO
(Talvez não queira abandonar os “picôtos” sem saber como se chegou a este nome tão pitoresco. “Picôtos” ?! Terá a ver com "côtos"? Ou será antes com "picos"?
Será que “picôtos” são picos? E , sendo picos, são picos grandes ou pequenos?
Se já conhece os “Picos da Europa”, uma cordilheira de altas montanhas ali pelas bandas de Covadonga, em Espanha, concluirá que, se “Picos” são altas montanhas, “picôtos” serão pequenas montanhas ou montes. Têm, no entanto, a particularidade de serem montanhas que terminam em "bico" - ou em "pico".)
E pronto. Esclarecido o pequeno mistério, já pode prosseguir o passeio.
Deixe, então, os picôtos, na sua eterna vigília, e siga na direcção do moinho. É só um quilómetro até lá chegar.
Mas, enquanto lá chega e não chega, veja os pequenos lameiros vestidos de “erva molar”. ( No Inverno, esta erva, já feno, espalhado nas manjedouras, torna-se o divino repasto de bezerros e vacas).
Entretanto, chegou ao moinho.
( Faça agora de conta que não é deste tempo. E que, junto ao moinho, presa a uma corda, está a burra do tio "Antonio" com um saco de milho a pesar-lhe no lombo.)
Veja este moinho ainda cheio de vida!
Está a ver aquele "rego" a desviar a água do seu escorrer natural, trazendo-a até este pequeno aqueduto? E aquele buraco negro e rectangular repleto de água?
São alguns metros de líquido espremido no cubo profundo, para melhor disparar o cachão lá em baixo, fazendo girar uma enorme roda em madeira.
É essa roda que você vai ver, a seguir.
Desça; circunde o casebre; e pare em frente à enorme bocarra, onde está instalada a geringonça, suspensa num eixo que penetra o chão do moinho até à mó, fazendo girá-la também, ao ritmo da "colega", debaixo. Veja a violência da água a cuspir contra a roda e a fazê-la girar tão depressa. A cachoeira a espargir,em chuveiro,raios líquidos que esvoaçam até se perderem ao redor. À volta daquela bocarra forma-se um lago fugaz, pois a água não pára ali, regressando sempre ao seu leito perene que é o ribeiro. ( A água é a substância mais útil, mais bela, multiforme e forte de toda a natureza. E a sua força está no seu eterno regresso. Na sua elementar juventude).
Quer ver o moinho por dentro? Tem toda a razão em querer.(Assistir àquele fenómeno rudimentar ... àquele mecanismo em acção concertada visando um único fim, é como ir ao teatro e sentir os actores a interagir com um desígnio comum: dar alimento à alma do espectador).
Então entre e assista a uma opereta invulgar em três actos.
Primeiro, os grãos de milho a cair lentamente no centro da mó. Depois, o rodopiar granítico da espessa roda a moer cada grão que caiu; Finalmente, a farinha a sair debaixo da mó formando um manto branco no chão do moinho.
E o seu pasmo terá sido tal, que aquele surdo e monocórdico cantarolar da roda espessa a esmagar os grãos assustados, lhe escapou ao ouvido.
Mas já os seus olhos estiveram atentos. E no fim do inefável espectáculo, a neve branca saída do milho transformou-se,perante o seu olhar regalado, em suave e esponjosa farinha.