João Paulo II visitava Braga naquele dia. Uma semana antes, tínhamos decidido ir , em família, à cidade dos arcebispos. O Geraldo, meu tio, prontificara-se logo:
- Há lugar pra mais dois?
Ficámos perplexos. Solitário por temperamento, ou mesmo por vocação, nunca solicitara nada a favor de ninguém. Por isso, um de nós indagou:
- Dois!?
- Sim. Tenho um garrafão de Valpaços. Uma pinga de trás da orelha pra beber numa fresca, em Braga.
Com um grão na asa, o Geraldo gerava, em quem o ouvisse, gargalhadas a fio. Era pois, garantia segura de alegrar a comitiva, de dois carros cheios até às costuras, na longa viagem. Claro que concordámos que iria connosco. No Renault do António ( meu primo) havia lugar "pra mais um"... O garrafão, esse, iria na mala, "mais longe da tentação"...
Lançados à estrada, pela manhã, chegámos a Braga cerca das 11 horas. Os carros,por interdição oficial de aceder ao Sameiro, ficaram os dois no sopé da montanha, nos arredores do Fraião.
A seguir, o início de uma longa subida até ao Santuário.
A estrada, Sameiro acima,era um novelo de curvas. De um lado e do outro, a natureza espraiava uma exuberância incomum. Árvores de grande porte projectavam ramos ao seu redor, como largas abas de guardassóis gigantescos. Por entre torrões verdejantes, deambulavam alegres regatos de água límpida. Pequenos arbustos lambiam as gotas que saltitavam.

E nós , em fila, lá íamos estrada acima calcorreando o sameiro, lestos e desejosos de atingir o ermo papal.
O Geraldo, esse, começava a deixar-se vencer pela sede. De garrafão a tiracolo , era vê-lo escorrer suor pelas fontes. Havia lugares, onde a frescura da relva, e a sombra desenhavam na margem da estrada cativantes esplanadas, onde apetecia estender a toalha, e espalhar a merenda.
O Geraldo vinha a observar esses sítios com um desejo indisfarçável de aí parar. Esperou o que pôde até proclamar o desejo que o torturava havia largos minutos. Sentar-se na berma da estrada, num dos seus recantos mais frescos, e fazer saltar, finalmente, a maldita rolha do garrafão.
Ninguém foi de encontro àquela vontade secreta.
Mas o Geraldo encontrou uma forma subtil de a sugerir:
- Que erva tenrinha! -Disse; Se eu fosse burro comia aqui já.
Gargalhada geral. Mas ninguém anuiu ao sugestivo convite. Nem um dos caminhantes lhe afagou o desejo. E a subida, quase no fim, continuou.
Eis-nos enfim no alto do monte.
Lá estava o escadario, enorme, repleto de gente. Ladeá-mo-lo e estendemos a manta e a toalha. O Geraldo pôde, finalmente, beber e comer. Nós acompanhámo-lo com a mesma voracidade.
Já bem aviados, fomos então ao encontro do Papa. A multidão apinhara-se a tempo e horas à entrada do escadario. Tivemos que inventar um acesso mais radical do que esperávamos.
O Abílio e eu trepámos o muro já a meio do escadario. Tinha cerca de três metros de altura. O Geraldo quis seguir-nos os passos. Mas, não tinha já a destreza que certas idades permitem. Junto do muro , havia sinais de uma recente limpeza e corte de varas de arbustos. Mas o corte oblíquo dos canos, acima do chão uns largos centímetros, tornava a superfície junto do muro um perigoso receptáculo a eventuais deslizes e quedas.
Ora, o Geraldo arriscou a subida ali mesmo, contando com a preciosa ajuda das mãos dos sobrinhos, desde a parte de cima do muro. E assim começou ele a subir com os pulsos presos pelas nossas mãos, que os apertavam como tenazes. A subida assim foi progredindo. Mas o Geraldo avisou, num tom sério e ameaçador:
- Livrai-vos de me deixar cair! É morte certa! Olhai os tocos, parecem setas!
Ora nós, que estávamos a cumprir a nossa missão com toda a normalidade, desatámos, os dois , num súbito e imparável ataque de riso. E quanto mais o Geraldo se amedrontava, e praguejava, mais o riso nos despegava as mãos dos seus pulsos. A ponto de o termos suspenso apenas pelas pontas dos dedos, com os dois pés a abanar à procura do muro. Perante a iminência da queda, estancámos, finalmente, o riso, e num repelão , puxámo-lo pra junto de nós.
O Geraldo ficou uns minutos sentado, com ar de quem acabara de ver a morte a seus pés, zangado connosco, convicto que quase o deixávamos morrer, trespassado pelos canos agudos, cortados, junto do muro, especialmente para a visita papal.
E andou meses a lembrar-nos a ocorrência, sempre em tom sério e acusador:
- Sois uns garotos! Aquilo não se fazia nem ó pior inimigo!
O certo é que, por essa ou por outra razão, o Geraldo acabou por não ver o Papa João Paulo II, estando este a escassos metros de si.
Mas, por outro lado, teve a sorte de ter saboreado umas magníficas pataniscas de bacalhau, bem regadas pelo seu inseparável valpaços, na companhia da sua gente.
CR
-