
Com as mãos entrelaçadas com o vento, voava pelo mundo do sonho. Protegia-se. Escondia-se. Fugia das ameaças constantes, das setas, das pedras, dos tiros disparados em desalinho. Cansara-se de ver a alma feita em estilhaços. Antes o corpo, pensava. Antes o corpo, dizia. Mil vezes o corpo, gritava! Mas ninguém a ouvia.
(O que é uma alma feita em estilhaços?)
Por vezes pensava não ser deste mundo. Ou ser tão simplesmente um ser tão raro, bizarro e inadaptado, cuja inteligência para nada servia, de nada valia. Como podiam tão “pequenas coisas” feri-la ao ponto de chorar? Ao ponto de hibernar? Ao ponto de se fechar, enjaulada, qual fera ferida?
Como podia permitir-se ser magoada? Como? Porque acreditava ainda? Porque duvidava sempre?
(Ah, a relatividade das pequenas coisas!)
Os mecanismos de defesa que desenvolvera não lhe pareciam suficientemente eficazes. Fizeram-na tornar-se apenas algo agressiva, arrogante, aparentemente fria, desconfiada e distanciar-se cada vez mais do mundo, das pessoas. Criara uma capa e uma máscara que não lhe serviam bem: uma larga demais, a outra demasiado apertada. E sentia-se desconfortável dentro de ambas.
Precisava de ar. Sempre precisara de muito ar. Sempre sentira necessidade de movimentos livres, espontâneos, verdadeiros, autênticos.
Como deixar de ser quem era? Como fingir o que não era?
Não conseguia. Muito menos o queria.
Servia-se menos da capa e tirara a máscara… Expunha-se agora demasiado… Teria força para arcar com as consequências?
(Afinal não podemos ser verdadeiros, muito menos transparentes neste mundo atroz!)
E passava o tempo a lamber as feridas, a limpar os estilhaços, a tentar reparar e aquecer uma alma doente.
Também magoava. Claro que o fazia e oh! se o fazia! Vingança? Descontrolo? Cansaço? Exaustão? Não só. Mas também. Provavelmente.
Mas fazia-o, principalmente, porque se tornara um ser impetuoso, temperamental, com algumas reacções “desgovernadas”, por força de tanto auto-controle e de tanto atrofio, durante anos. De tão calcada, magoada, reduzida a pó durante mais de duas décadas, rebelou-se. Era imperioso. A mente pediu. Ou seria o corpo que se ressentiu e falou mais alto?!
Não sei ao certo. Sei apenas que mente e corpo caminham juntos, de mãos dadas e que um condiciona o outro. Mas julgo ainda que tudo, mas tudo se processa primeiro nesse lugar poderoso, não palpável, não visível, que tudo influencia, tudo conduz. A mente. Esse lugar fascinante e obscuro, secreto, surpreendente, delicado, onde é tão difícil penetrar.
Ainda bem que não temos consciência do poder que a nossa mente tem. Ainda bem. Dificilmente lhe daríamos o uso devido e poderíamos entrar por caminhos sem volta.
Por alguma razão os génios são como são. Acredito que parte da sua mente esteja mais desenvolvida e funcione de forma mais eficiente. O lado criativo, por exemplo. Mas essa genialidade acarretará, com certeza, ansiedade, hiperactividade, falta de sono, turbulência interior e desalinho. Ou fases de inanimidade para repôr energias. Ninguém aguentará este “viver intensamente” constante. Esgota demais.
Tenho medo da minha mente. Tenho muito medo. Porque mesmo quando durmo em excesso, não sinto que descanso. É como se ruminasse. E em fases de hiperactividade, embora me agradem muito e me sinta viva, viva, assusto-me muito mesmo. A energia flui e flui, o sono não vem, até que a criatividade e a produtividade se revelam irritantes… Mas sou eu que estou irritada, porque não descanso.
O organismo encarrega-se depois, no meu caso, de me fazer parar. E dá-se o inverso. Hiberno. Vegeto. Revisto-me duma quietude quase sonâmbula até à exaustão. Até que “ressuscito” e o ciclo repete-se.
Não sou nenhum génio. Apenas respeito a minha mente. E não quero fazer mau uso das minhas faculdades mentais.
Também por causa das feridas, das cicatrizes e dos estilhaços.
Celeste 26.11.2012